São Jorge Virado do Avesso - Azores Lovers
São Jorge Virado do Avesso
Encontrar um dragão morto, conhecer um farol aterrador que deu cenário a um filme português, ver uma igreja engolida por um vulcão e conhecer vacas que nadam. Tudo isto é possível em São Jorge – e não, não precisa acreditar em unicórnios a descerem por arco-íris com brilhantes. Mas ajuda se tiver uma boa dose de energia. Aqui vai conhecer tudo o que há de absolutamente imperdível na ilha mais ao centro do arquipélago dos Açores.
O FAROL DO TERROR
Comecemos pelo cenário mais terrorífico da ilha e que até já inspirou um filme. A “Ponta dos Rosais” é uma curta-metragem, realizada pelo ator Dinarte Branco, e cuja ação se centra no farol da Ponta dos Rosais (1). À entrada vai ver escrito “Perigo não entrar”. Não ligue. Entre. O farol fica a 200 metros do mar, numa falésia incrível. No recinto, se olhar para os seus pés, vai encontrar a terra rachada, que resulta da erosão do mar a bater nas rochas. Para aumentar a adrenalina, o próprio farol, onde residiam as famílias dos faroleiros, está abandonado sobre essas falhas: as portas e as janelas já não existem; conseguimos ver os sítios onde há 70 anos estavam os fogões e os armários, mas as paredes já se misturam com o verde da paisagem e nelas estão escritas o típico “David and Lucy 1995” ou “Para sempre Filipe e Mariana (coração)”. Mas nem sempre foi assim. Na sua inauguração, em 1958, era considerado o farol tecnologicamente mais avançado do país (imagine-se!), completamente autossuficiente em água e energia.
CONSTRUÇÕES D’OURO
Outra experiência incrível: à primeira vista parece humilde, mas é Património Nacional. A Igreja de Santa Bárbara (2) fica no cimo de 15 degraus, na freguesia das Manadas. Na fachada, a porta, de um vermelho escuro, contrasta com o basalto negro e a cal das paredes. A simplicidade da construção é contrariada com a riqueza do seu interior barroco. Há talha dourada; madeira de cedro-do-mato no teto; e, nas paredes, quadros pintados sobre a madeira e painéis de azulejos que retratam a vida da santa que dá nome à igreja. Foi recentemente restaurada e vai emocionar, de certeza, até quem desconfia do catecismo.
IR TÃO ALTO COMO UM DRAGÃO
Agora é aproveitar que está nas Manadas para subir ao ponto mais alto da ilha: o Pico da Esperança (3). Lá em cima, na montanha, há um pequeno marco, uma espécie de muro quadrado onde só cabem dois pés. Suba-o. Está a 1.053 metros de altitude. Lá de cima pode ver 5 ilhas – São Jorge, Pico, Faial, Terceira e Graciosa – mas também pode ver um dragão, e ajuda muito de conhecer esta lenda. A ilha chama-se São Jorge porque a sua cordilheira montanhosa parece o dragão que amaldiçoava mulheres na Líbia e que o santo Jorge matou à espera de, com isso, o rei lhe dar a filha em casamento. E é por parecer o animal mitológico que a ilha se chamou São Jorge. Os menos românticos têm outra explicação: a ilha ficou com este nome porque foi descoberta a 23 de abril, dia de São Jorge. Mas esta versão tem muita menos graça.
GASTRONOMIA E VIVÊNCIA REGIONAL
Temo de falar de um lugar espetacular onde todas as refeições são confecionadas com produtos regionais. O peixe acabou de ser pescado, foi trazido pela manhã; o queijo é de São Jorge; a carne vem das pastagens ao nosso lado e há vinho do Pico para acompanhar. A sala de refeições é circular, feita de pedra e madeira, e há janelas em toda a volta. A mesa fica virada para a montanha do Pico. O restaurante chama-se Fornos de Lava (4) e fica em Santo Amaro.
ENGOLIDA PELA TERRA
Há mais uma história que desafia a lei da gravidade e pode provocar-lhe a queda do maxilar inferior: há uma igreja que foi engolida pela terra. A Torre da Urzelina (5) foi a única coisa que restou para contar a história. Recuamos a 1808. A terra tremia com um vulcão em erupção e a lava arrastava as casas. As pessoas, ao verem a igreja ameaçada, começaram a retirar o que lá estava dentro. Uma vaga enorme de lava começou a descer, e as pessoas não conseguiram chegar ao que estava guardado na torre: alguns santos e as varas do Espírito Santo. A vaga engoliu a igreja e o que estava à sua volta, mas desviou-se e deixou intacta a torre e tudo o que lá estava dentro. Passaram mais de 200 anos. A torre ainda lá está.
COMIDA QUE AQUECE O CORAÇÃO
Claro que vamos ter de falar mais em pormenor sobre o queijo de são Jorge. Pode sempre fazer uma rota pelas cooperativas da ilha, conhecer o fabrico e a produção, terminando na escolha do seu queijo preferido. Mas por favor não se vá embora sem provar as nossas Espécies. São doces tradicionais da ilha, feitos com especiarias. A receita manda juntar ao cacau qualquer coisa como canela, erva-doce e hortelã. Mas deixe lugar para o que vem a seguir. Muito lugar.
ROTAS DE FÉ E DE SABOR
Há restaurantes que as servem impecavelmente todo o ano, mas as Sopas do Espírito Santo são ainda mais especiais quando comidas na sua época. Podemos tentar resumir a receita muito humildemente, mas esse resumo nunca fará jus ao sabor que as Sopas têm. Basicamente a água que coze a carne e os vários enchidos é posta sobre grandes fatias de pão cozido, e juntam-lhes infinitas especiarias. Há ainda arroz doce e, nalguns casos, alcatra (esta última não se consegue pôr em palavras – tem mesmo de vir descobrir e perder-se pelo sabor). Se tiver a sorte de estar em São Jorge na sétima ou oitava semana depois da Páscoa (semanas do Espírito Santo e da Trindade, respetivamente), há mais uma rota que pode e deve fazer. Percorra todas as freguesias e vai encontrar, nos impérios do Espírito Santo de cada uma delas, gente a servir sopas. Importante: não encontra nenhuma igual à anterior. O melhor: são grátis.
PROMESSAS QUE SÃO SEMPRE CUMPRIDAS
Para terminar, mais uma história de deixar cair o maxilar, e tem a ver com vacas a nadar. Se seguir sempre até à ponta mais oriental da ilha vai encontrar o Ilhéu do Topo (7) (com a ilha Terceira atrás). Dizem os mais antigos que, há uns anos, o homem responsável pelo Espírito Santo no Topo tinha comprado dois bois para fazer as Sopas, dar as típicas esmolas de carne por toda a freguesia e conseguir uma festa mais farta do que as habituais. Para isso, decidiu pôr os animais no ilhéu – porque lá, devido ao clima e ao solo favorável, a erva era ainda melhor para a alimentação do gado.
Os bois tinham ido a nado, acompanhados por um barco e por marinheiros, e assim tinham de voltar. Mas nos dias que antecederam a festa fez muito mau tempo e não conseguiram pôr o barco ao mar para ir buscar os animais. O dono da festa não ficou satisfeito mas pretendia, ainda assim, pagar a sua promessa e foi comprar dois novos bois. Na sexta-feira antes do domingo da festa, enquanto ultimavam os preparativos, viram, ao seu lado, os bois gordos que, supostamente, estariam no ilhéu. A festa fez-se ainda maior do que o previsto, não com dois bois, mas com quatro. Por alguma razão se diz que aqui as vacas são mais felizes.
Ana Cláudia Veríssimo